Minha pequena célula...

Minha pequena célula...

02 de dezembro de 2021

A coluna da Bicca aborda de maneira leve e descontraída temas relevantes sobre ciência e saúde. Seus personagens e seus questionamentos abrem portas para explicações e reflexões descomplicadas.

Número 12 - Minha pequena célula...


- Ah manhê, eu não quero tomar banho...
- Clarice, minha filha, você quis brincar no parque, eu te levei. Agora, você precisa tomar banho. Toda ação tem um consequência minha filha. Um dia você vai aprender com a Física na escola, “para toda ação existe uma reação”.
-Poxa mãe, você tá sempre cheia de frases bonitas. Não podia ter uma pílula mágica, que a gente tomasse e já ficasse limpinha?
-Todo mundo quer a tal pílula mágica Lice, para viajar sem precisar pegar um avião, para ganhar muito dinheiro sem precisar trabalhar, para emagrecer e continuar comendo muito. E adivinha? Você é uma menina muito inteligente...
-Não tem né, mãe?!
Diz Clarice quase que conformada, porém ainda um pouco relutante.
-Não minha filha, não tem. Na maioria das vezes, o resultado que a gente quer só depende de uma coisa...
-Da gente mesmo, né mãe? Entendi.
Falou ela abrindo a porta do box e entrando embaixo do chuveiro.

DEPENDE APENAS DE NÓS MESMOS.

É duro, é. É forte, é, mas infelizmente não tem receita pronta, não tem fórmula mágica e nem saída milagrosa. O diabetes do tipo 2, é consequência do nosso estilo de vida. Na grande maioria das situações. Claro, querido leitor, tem os fatores genéticos, têm. Mas eu não vou fazer um “sugar coating” aqui não. Essa expressão do inglês quer literalmente dizer não vou “cobrir com açúcar”, querendo dizer que eu não vou mascarar a realidade para torná-la mais doce, e mais aceitável. Não, eu não vou, porque doce em excesso é, de fato, um dos grandes problemas, mas não apenas o doce, olha que trocadilho fabuloso, eu ri com respeito. A alimentação irregular, exagerada, em excesso, deficiente em vegetais, frutas, grãos e sementes, é problema. Ir de carro a todos os lugares, trabalhar sentado no computador, ir pra casa e assistir à Netflix (geralmente comendo), sentar no sofá e ficar no celular, e por consequência caminhar muito pouco ou praticamente nada, é problema. Não praticar exercícios, não praticar esportes, é problema. É um ciclo vicioso, difícil de sair. Por conta de todos esses maus-hábitos, você dorme mal, muito provavelmente, eu posso apostar.
Você que já leu minha coluna aqui (Meu olhinho tá fechando https://rigorcientifico.com.br/conteudos/meu-olhinho-ta-fechando) sabe que se o nosso sono vai mal, a maioria dos hormônios do corpo vai mal. Fala aí se você já ouviu isso: ‘eu não consigo emagrecer porque tenho problema hormonal’. Pois bem, pergunte-se: Por que os hormônios estão todos ‘avacalhados’? Volte 4 casas, comece a ler do início, e encontre a resposta. Trago verdades. Pode parecer que eu estou falando Grego, ou Russo, mas não, eu estou falando Português, claro. Maíra, ainda não entendi como tudo isso está conectado com o diabetes do tipo 2! Você disse na coluna anterior que: “no diabetes do tipo 2 os ‘sensores’ que percebem a insulina nas células, e que sinalizam para a abertura das portas para que a glicose possa entrar, não funcionam. Desta forma, as portas raramente se abrem, e assim, a glicose não entra, se não conseguimos estocar a glicose, ficamos sem energia.” O que isso tem a ver com os nossos hábitos? Eu te respondo, meu querido leitor, a pergunta que você deve fazer a si mesmo agora é: como os nossos sensores param de funcionar? A resposta? Volte 2 parágrafos, leia com atenção. É isso. Como assim Maíra? Você me pergunta. O fato é que existem muitas maneiras de explicar como os nossos hábitos estão conectados com o diabetes tipo 2, mas a mais simples delas é: INFLAMAÇÃO! Parece bobo, mas não é.
O nosso corpo vive em um constate estado de tentar manter o equilíbrio, equilíbrio para tudo: hormônios e proteínas sendo produzidos, batimentos cardíacos, neurônios fazendo sinapses, células de defesa do sistema imunológico trabalhando, músculos sendo treinados, tudo, absolutamente tudo, é regulado pelo processo inflamatório, que tem um início e um fim. Naturalmente. O problema acontece quando a inflamação não cessa, ou seja, quando a inflamação não acaba. Para começar que ela se inicia porque algo está errado, por exemplo, quando você corta o dedo, ou quando você toma muito sol, ou quando bebe muito álcool, ou quando extrai um dente, eu poderia dar aqui inúmeros exemplos de coisas que ativam a inflamação no nosso corpo. A ideia é que você entenda que a inflamação existe por um motivo bom, precisamos dela para ‘curar o corpo’. De forma natural, quando o problema que causou a inflamação vai embora, a inflamação também vai, MAS, nem sempre ele vai. No caso do diabetes tipo 2, uma inflamação constante, de baixo grau e duradoura está sendo produzida e mantida por quem? Por quais células? Pelos nossos adipócitos. Que raio de nome é esse, Maíra? São as células que estocam gordura que eu falei na primeira coluna dessa série (Doces ou Travessuras https://rigorcientifico.com.br/conteudos/doces-ou-travessuras), quando disse que o tecido adiposo, formado por adipócitos, é aquela gordurinha na nossa barriga que a gente está sempre almejando perder.
Por muito tempo pensou-se que os famosos adipócitos, só serviam para estocar gordura. Pasmem meus amigos, não. Essas células produzem uma série de moléculas inflamatórias, junto com as células do sistema imunológico que nessa altura já estão todas vestidas ‘à caráter’ na festinha inflamatória, ou seja, todas já produzindo também moléculas inflamatórias, influenciadas pelas células de gordura. O adipócito é igual influenciador do instagram, tem milhões de seguidores que vão querer ser igual ele. Então, vem comigo, seu adipócito é saudável come bem, faz exercício, bebe água e dorme bem...os influenciados vão seguir nesse nível e todo seu sistema vive num belo ambiente não-inflamatório. Agora, se o seu adipócito influenciador, só come besteira, não faz exercício, bebe muito alcool, fuma, dorme mal... os influenciados vão seguir esse trio elétrico e a música que vai tocar sem parar é: minha pequena célula, nossa inflamação na última astronave. Ao carregar o sobrepeso, você não está somente carregando um excesso de gordura, você está carregando um micro-ambiente inflamatório que está influenciando todas as células do seu corpo. Essa inflamação é que faz com que os sensores que percebem a insulina parem de funcionar, e aí o último passo é o Diabetes. O corpo inflamado é como a água nos sensores de insulina que são metal, ele faz tudo enferrujar. A porta não abre. A glicose não entra.
Você pode me dizer, ahh Maíra, mas eu tenho sobrepeso e não tenho diabetes. AINDA. Talvez hoje você não tenha, talvez não terá nunca por alguns outros fatores, mas saiba: O seu corpo vive numa constante luta. Uma batalha diária, lutando contra a inflamação que nunca acaba. Ele está exausto. E essa luta te torna propenso, ou melhor dizendo, aumenta a sua predisposição à muitas outras doenças inflamatórias, cardíacas, e neurodegenerativas. Artrite, pressão alta, aterosclerose, Alzheimer, etc. Como eu falei, todos os seguidores são afetados, em todas as áreas do seu corpo. E eu nem falei ainda de intestino e microbiota, ainda não falei da sua regularidade de ir ao banheiro e a sua ingestão de água, e a intolerância a lactose, lembra? Está tudo conectado, não existe algo no nosso corpo que seja isolado. De uma vez por todas: toda ação tem um reação. Não existe pílula mágica. A maioria das pessoas entra num consultório esperando um medicamento que vai resolver a sua vida. É a coisa mais comum com portadores do diabetes do tipo 2, a maioria não gosta de ouvir que a mudança de hábitos é a forma mais eficaz de tratamento. A grande maioria quer tomar um remédio uma vez por dia e continuar a comer lanche, pizza, torta e sorvete, sentar no sofá e mexer no celular, pegar o carro e ir na casa do amigo que mora 4 quadras da sua, e beber no final de semana como se não houvesse amanhã. Eu estou generalizando aqui, espero que tenha entendido. O nosso estilo de vida é o fator principal para o desenvolvimento do diabetes tipo 2, e enquanto você pensa: são apenas uns quilinhos a mais na balança, o seu corpo está fazendo um esforço surreal para manter tudo no equilíbrio. A via de regra é: se você não se sente bem, que as coisas não estão funcionando “nos trinques”, quer dizer que algo de errado não está certo, como diriam os jovens. Melhor você fazer a manutenção no carro agora, antes que o problema fique maior e nenhum mecânico consiga resolver. Vou terminar esse texto com duas frases muito maravilhosas de filósofos incríveis: “Você é o que você come” e “Deixe que seu remédio seja seu alimento, e que seu alimento seja seu remédio”.

Maíra Assunção Bicca
Maíra Assunção Bicca

Farmacologista e Neurocientista
Pós-doutorado em Imunofarmacologia (UFSC - 2016) e em Neurobiologia (Northwestern University - 2017-2019)
Research Fellow no Neurosurgery Pain Research Institute - Departamento de Neurocirurgia e Neurociência da Johns Hopkins School of Medicine.

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