Meu olhinho tá fechando

Meu olhinho tá fechando

19 de agosto de 2021

A coluna da Bicca aborda de maneira leve e descontraída temas relevantes sobre ciência e saúde. Seus personagens e seus questionamentos abrem portas para explicações e reflexões descomplicadas.

Número 5 - Meu olhinho tá fechando 
 

Lice pula na cama da mamãe e do papai as 7:30 da manhã no sábado. Animadíssima, cheia de energia. Fala incessantemente, alto, num nível de empolgação maior que o usual, pronta para “pipocar” mais um dia. 
- O que a gente vai fazer hoje, manhê? Quais são os planos? A gente podia ir no parque, depois a gente podia tomar sorvete, depois brincar de games aqui em casa, e daí podíamos fazer um bolo, enquanto o papai faz comidinha gostosa...e continua tagarelando sobre os planos, enquanto o pai apresentava uma meia-lua de olho e a mãe um sorriso desleixado, depois de limpar a própria baba no canto da boca. 
Lins ouviu o barulho do quarto, levantou de sua cama, em silêncio, caminhou a pequenos passos rumo ao quarto do casal. Pacientemente, enquanto Lice continuava tagarelando, em meio aos resmungos do pai e da mãe, ele deitou-se ao lado da mãe na cama e cobriu-se, fechou os olhos instantaneamente. 
- O que você acha papai? A gente podia também andar de bicicleta, enquanto você e a mamãe correm no parque...bla bla bla bla, era o que Lins ouvia. 
Sem pronunciar uma palavra, ele abria os olhos a cada 2 minutos, para conferir a situação dos planos e novamente fechava os olhos, enroscado meio-meio, no pescoço da mamãe e nas cobertas. 
- Lice a gente não vai poder fazer tudo, é bom aprender desde cedo, existem prioridades. Disse o pai cheio de confiança. 
- Prioridade? Que palavra é essa papai? 
- Quer dizer que a gente faz as coisas mais importantes primeiro Lice, e por aí vai. Respondeu a mãe com paciência, de olhos meio abertos, cheia de sono ainda, depois do dia corrido que foi o anterior. 
-Ah, andar de bicicleta é importante, e tomar sorvete também é. Vocês sempre dizem que a gente tem que fazer exercício e ser feliz ao extremo. Eu adoro bicicleta, e sorvete, com certeza me deixa feliz da vida! São prioridades! O que você acha Lins? 
Lice dirigiu-se a ele, naquele exato momento, entre os 2 minutos, em que ele abria os olhos para conferir a situação. Forçado a pronunciar-se ele diretamente e sem exitar dispara: 
- Eu não sei ao certo Lice, que tal a gente fechar os olhinhos para pensar?
  
O sono talvez seja uma das armas mais poderosas do ser humano. É tão essencial quanto comer. Não é a toa que dependendo do que você come, você atrapalha o seu sono e, dependendo de como você dorme, você atrapalha seu apetite. Tudo no nosso corpo está interligado. O sono afeta o humor, a memória, o ritmo do coração, o ritmo da respiração, a produção de hormônios: do estresse (cortisol), da tireóide (T4), do sistema digestório (grelina, GIP, insulina, glucagon), da reprodução (estrogênio e progesterona, testosterona), do próprio sono (melatonina), da felicidade, amor e produção de leite (ocitocina), a capacidade de tomar decisões, a habilidade de desempenhar funções, o foco, a percepção ao ambiente: o odor, o tato, o paladar, a sensação de dor. Eu poderia escrever uma ‘Barsa’ (aquela coleção completa de livros antigos) sobre o efeitos do sono na nossa vida, mas esse não é o ponto. O ponto é que muitas vezes ouvimos a seguinte expressão: “deixa para dormir quando estiver morto” ou a outra: “para quê perder tempo dormindo?”.
 
Dormir não é perda de tempo. Dormir é ganho de qualidade de vida e, portanto, prolongar a sua jovialidade e seu tempo nesse globo. Veja bem, eu não estou incentivando o leitor a viver na cama, isso também não é saudável. Para tudo na vida há um equilíbrio. É necessário, no entanto, ressaltar o quanto o nosso estilo de vida contemporâneo, ou moderno, como queira chamar, requer que façamos milhões de coisas ao mesmo tempo. Estamos sempre cheios de coisas para fazer, muitas “prioridades”, muitos compromissos, muito tempo conectados nas redes sociais e nos serviços de streaming. Assim, dentre as infinitas coisas da nossa lista de afazeres, acabamos por deixar o sono de lado, priorizamos as outras coisas por fazer e acabamos dormindo menos do que deveríamos; aí, também dormimos mal, porque sempre estamos cheios de coisa na cabeça, para resolver amanhã. E então, meus caros leitores, os vícios do mau-hábito do sono se iniciam. Vamos para a cama mais tarde do que deveríamos, exaustos, ingerimos bebidas alcoólicas ou remédios para dormir na intenção de induzir o sono; dormimos menos que o necessário, então colocamos o despertador para acordar-nos na hora que precisamos trabalhar, assim interrompemos o ciclo do sono (sim o sono é um processo em ciclos). Como já acordamos cansados feat acabados, nós fazemos o quê? Sim, baldes e jarras de café, ou seja, entupimos nosso cérebro de estimulante. E essa é a receita para uma bomba-relógio que vive dentro de nós. Lembre-se: se o sono não vai bem, tudo aquilo que eu falei antes, dentro do nosso corpo, também não vai bem.
 
Eu falei que o sono acontece em ciclos, certo? Vamos pensar em um carro e nas diferentes marchas. Cada marcha é um estágio do sono. Você não pode passar da segunda marcha para a quinta, sem velocidade, da mesma maneira que não pode simplesmente desligar e parar o carro enquanto está na quarta marcha. Por que fazemos isso com o nosso sono? Por que adulteramos as etapas dos sono, usando remédios? Por que utilizamos despertador para interrompê-lo quando estamos na alta velocidade das nossas conexões cerebrais? O nosso carro precisa funcionar “redondo” e para isso precisamos respeitar as etapas de troca de marcha, bem como, precisamos respeitar as etapas do sono. É durante essa importante troca de etapas do sono que o nosso organismo se organiza, que algumas células entram em processo de cura e descanso, enquanto outras entram em processo de trabalho e atividade. O poder está nos nossos olhos, quer dizer, no nosso cérebro. Acho que foi possível compreender, o poder está em nossas mãos.

Maíra Assunção Bicca
Maíra Assunção Bicca

Farmacologista e Neurocientista
Pós-doutorado em Imunofarmacologia (UFSC - 2016) e em Neurobiologia (Northwestern University - 2017-2019)
Research Fellow no Neurosurgery Pain Research Institute - Departamento de Neurocirurgia e Neurociência da Johns Hopkins School of Medicine.

Comentários

Nenhum comentário encontrado