Adocica, meu amor, Adocica

Adocica, meu amor, Adocica

11 de novembro de 2021

A coluna da Bicca aborda de maneira leve e descontraída temas relevantes sobre ciência e saúde. Seus personagens e seus questionamentos abrem portas para explicações e reflexões descomplicadas.

Número 11 - Adocica, meu amor, adocica


Mãaaaanhê, já está na hora da sobremesa? Grita Lins, com muito vigor.
Meu filho, a gente nem almoçou ainda e você já quer sobremesa? Temos que comer a comida primeiro. Saladinha, arroz, vegetais, lentilha, farofinha. Explica a mãe com aquela paciência que ela mesma não sabe de onde tira.
...mas mãe, eu gosto muito de doce, por mim, a gente poderia comer a sobremesa primeiro, depois o almoço, e depois a sobremesa de novo. Explica Lins, levantando os dedos e contado a ordem do processo.
Filho, eu sei que você é formiguinha, mas a gente tem que maneirar no açúcar. As pessoas não falam muito sobre isso, mas o açúcar refinado é um dos piores venenos para o corpo.
Veneno, mãe? Como um veneno pode ser tão gostoso? Lins pergunta com uma cara de quem não está entendendo mais nada.
Você acha que a Branca de Neve iria comer a maçã envenedada se ela tivesse gosto ruim? Os venenos vêm disfarçados filho.
Como assim disfarçados, mãe?
Sabe as bolachas do supermercado, os molhos para salada, os cereais, os achocolatados, os sorvetes, a maionese, o ketchup, os pães, os refrigerantes...tudo isso é bem gostoso, certo? Pouca gente olha a embalagem, lá onde estão os ingredientes, para saber a quantidade de açúcar que está comendo. Está tudo lá ‘disfarçado’ a mãe faz aspas com as mãos, nas embalagens que dizem: natural, orgânico, sem glúten, sem lactose, com imagens bonitas, folhas verdinhas. Assim como a maçã bonita e vermelha da bruxa para a Branca de Neve.
Que bom que na sua sobremesa não tem nada disfarçado né, manhê? Posso comer a sobremesa primeiro?

Até aqui você já entendeu como nosso corpo processa o açúcar, ou carboidrato, ou a glicose. Opa, espera, não entendeu? Volte uma casa e leia o texto Doces ou Travessuras (https://rigorcientifico.com.br/conteudos/doces-ou-travessuras). Para acompanhar essa viagem, você não pode perder nenhuma etapa. O fato é que, precisamos de glicose para sobreviver, armazenamos glicose no nosso corpo, e por um mecanismo muito regulado, dependente de principalmente 2 hormônios, o corpo funciona para estocar ou queimar a glicose. O hormônio que regula a estocagem da glicose é a INSULINA e eu a mencionei brevemente na última coluna. É ela que faz com que as portas das nossas células se abram para que a glicose possa entrar. Eu também expliquei como através de sensores o pâncreas entende que a insulina precisa ser liberada e como através de outros sensores as células, no fígado ou nos músculos, percebem a insulina e abrem as portas para a glicose.
Bom, está na hora de falar do famoso Diabetes. Primeiro, vamos aqui deixar claro que existem 2 tipos de Diabetes, o tipo 1 e o tipo 2. Sendo que, o tipo 2 é o mais comum, e é sobre ele que vamos falar, e muito ainda, nessa sequência de colunas. Maíra, qual a diferença? É simples, vamos continuar pensando na comparação do nosso corpo com um carro. O diabetes do Tipo 1, é uma doença auto-imune, que quer dizer que por alguma razão, alguns anticorpos do indivíduo reconhecem as células beta no pâncreas (aquelas que produzem insulina) como se fossem externas, ou representassem perigo, e aí o organismo monta uma resposta de ataque a essas células, comandada pelo poderoso chefão, vulgo comandante, e essas células morrem. Ou seja, o indivíduo não tem células suficientes que produzem insulina. É como se seu carro tivesse vindo com um defeito de fábrica, você tem os sensores de ré que apitam quando o carro vai estacionar lembra? (vai lá conferir o texto anterior, para sair daqui um expert no tema). Porém, o defeito no tanque reserva não te permite armazenar o óleo (insulina), o freio não funciona direito. E aí é choque na certa.
O diabetes no tipo 2 é geralmente uma falha no outro conjunto de sensores, aqueles que que percebem que desligamos o carro e as luzes estão acesas. Então, você desliga o carro, e esquece as luzes acesas, já que o sensor não apitou, e no outro dia o que acontece? Não consegue ligar o carro porque gastou toda a energia da bateria. Da mesma maneira, no diabetes do tipo 2, os ‘sensores’ que percebem a insulina nas células, e que sinalizam para a abertura das portas para que a glicose possa entrar, não funcionam. Desta forma, as portas raramente se abrem, e assim, a glicose não entra, se não conseguimos estocar a glicose, ficamos sem energia.
Em ambos os casos, tipo 1 ou tipo 2, o resultado é: altos níveis de glicose circulantes, ou seja, muita glicose viajando no seu sangue, sem ter para onde ir. E é exatamente por isso, que para diagnosticar o diabetes, o passo inicial é fazer um exame de sangue, para ver os níveis de glicose no sangue, depois do jejum. A glicose no sangue depois de tantas horas sem comer, é o marcador de que algo está errado, isso porque, até lá os sensores do nosso carro já deveriam ter funcionado para que a insulina seja liberada, e para que ela atue nas células para que a glicose entre. Se a glicose não entrou, ou a insulina não está sendo produzida (diabetes tipo 1) ou as células não estão percebendo a insulina que está sendo produzida (diabetes tipo 2). E aqui você entendeu, de uma vez por todas a relação da avaliação da glicose no sangue, com a insulina e o diabetes.
Veja bem, é por isso que muitas vezes os tipos de diabetes são categorizados como insulo-dependentes, ou não-insulino-dependentes. Uma vez que no primeiro caso a pessoa não fabrica insulina de forma suficiente, então ela precisa de insulina externa, logo, insulino-dependente. No outro caso, a pessoa fabrica insulina, ao menos no início, e a falha acontece é na sensibilização do tecido que não responde a insulina que está presente, portanto, não-insulino-dependente. Eu sei que pode parecer complicado, mas se leu até aqui os 2 textos com atenção, não é não. E eu vou simplificar ainda mais. Pode contar comigo nessa viagem, no nosso carro extraordinário.
O que nós vamos falar daqui para frente é como que os nossos sensores de luz acesa, param de funcionar, ou seja, como a gente se torna dibético do tipo 2. E como mais tarde, até nesse caso, a pessoa pode se tornar dependente de insulina também. É uma jornada e tanto meus caros leitores, mas eu tenho certeza que você não vai querer perder essa viagem e sair ao final dessas crônicas consciente do seu carro, de como seus sensores funcionam, de quantos km por litro ele faz, de como está a troca do seu óleo, de qual gasolina você deve usar e como deve fazer a manutenção. Seja consciente do seu veículo, quero dizer, do seu corpo! Vamos abrir os olhos para os venenos disfarçados, para todos os disfarces que nos fazem acreditar que está tudo bem, quando na verdade não está. O perigo do sobrepeso, que é um do fatores mais comuns na nossa sociedade, e que está aceito como normalidade. A gravidade da obsidade, e dos estilos de vida modernos que nós, como sociedade, adotamos. A conveniência e o conforto que nos levaram a ser mais sedentários. Esta série de textos aborda esses temas sem preconceitos, sem envergonhar ou desmerecer ninguém por causa do seu corpo. Esta é uma série de textos que fala da funcionalidade do nosso carro e de como otimizar as nossas escolhas para que esse carro dure por longos anos. A vida pode ser bem doce, muito doce, sem açúcar em excesso.

Maíra Assunção Bicca
Maíra Assunção Bicca

Farmacologista e Neurocientista
Pós-doutorado em Imunofarmacologia (UFSC - 2016) e em Neurobiologia (Northwestern University - 2017-2019)
Research Fellow no Neurosurgery Pain Research Institute - Departamento de Neurocirurgia e Neurociência da Johns Hopkins School of Medicine.

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