Transplante de coração de porco em homem

Transplante de coração de porco em homem

24 de janeiro de 2022

Transplantes

Mais de 40 mil transplantes foram realizados em 2021 - um recorde, de acordo com a Organ Procurement and Transplantation Network. O recorde é algo a se comemorar? Lógico! Representa um avanço? Sim! Mas ainda assim, são centenas de milhares de pessoas no mundo na fila por um órgão. Então quando a gente se depara com uma notícia arrasadora como essa, não tem como não ficar extasiado.
O Brasil é o país com o maior sistema público de transplante do mundo. No Brasil, no ano de 2021, eram 53.218 pessoas em busca de um órgão ou tecido. No nosso país existem 648 Hospitais de Transplantes habilitados e mais de 1.600 Equipes de Transplantes habilitadas. Pormenorizando o dado, das 53.218 pessoas, no Brasil, são 31.125 pessoas a espera por um rim, 19.115 a espera da córnea, 1.905 esperando pelo fígado, 387 pessoas esperando por um transplante duplo de pâncreas e rim, são 365 pessoas a espera de um coração e 259 a espera de um pulmão. (Dados do Ministério da Saúde de 27/09/2021)
Analisando esses dados fica claro que existe uma demanda ainda não atendida. É de conhecimento geral boa parte das dificuldades e limitações que envolvem os transplantes de órgãos, desde um doador compatível, taxas de rejeição e reação imune, e até a compreensão das pessoas sobre o assunto.
Foi notícia em todos os jornais do planeta que David Bennet de 57 anos foi a primeira pessoa do mundo a receber o coração de um porco através de um transplante. Falando assim pode até parecer simples, mas não, não é. A primeira coisa importante a falar é que o animal doador do coração foi geneticamente modificado. Segundo, o paciente tinha uma doença cardíaca terminal, estava inelegível para um transplante de coração convencional ou uma bomba de coração artificial - portanto "a única opção disponível naquele momento" para salvar a vida dele era o coração do animal.
Considerando a emergência da cirurgia devido às condições de saúde do paciente, o FDA concedeu a autorização para a cirurgia em 31 de dezembro de 2021. Um dos cirurgiões responsáveis Dr. Bartley P. Griffith, disse em comunicado à imprensa que "... não há corações humanos de doadores suficientes disponíveis para atender a longa lista de potenciais receptores".
Válvulas cardíacas de porco foram transplantadas para humanos durante muitos anos. Em outubro de 2021, o transplante de um rim de porco geneticamente modificado foi realizado em um mulher com morte cerebral, em Nova York. Então, não é de hoje que a ideia de usar manipulação genética em animais seja uma estratégia para resolver problemas graves de saúde.
Fato é que a primeira pessoa a receber um coração transplantado de um porco geneticamente modificado, está bem após o procedimento. Os médicos e pesquisadores esperam que esse avanço permita que mais pessoas sejam beneficiadas, mas ainda existem muitos obstáculos éticos e técnicos pelo caminho.
Médicos e cientistas do mundo todo estão há décadas pesquisando sobre a possibilidade do xenotransplante - transplantar órgãos de animais em pessoas. A cirurgia realizada pela equipe do Dr. Bartley Griffith representa um marco e um grande avanço nesse sentido.

Xenotransplante

Com o avanço das tecnologias em biologia molecular e genética, especialmente com a técnica CRISPR-Cas9 (técnica de engenharia genética em biologia molecular que permite realizar cortes no DNA em regiões alvo específicas - assista o vídeo no final para entender mais sobre a técnica), diversos avanços foram realizados na área do xenotransplante.
Essa técnica permite a modificação genética do doador, nesse caso o porco, tornando o órgão menos "agressivo" para o sistema imune humano, e assim, a taxa de rejeição se reduz. O coração transplantado pelos médicos da Universidade de Maryland nos EUA possui 10 modificações genéticas.

  • 3 genes que são responsáveis pelo rejeição de órgãos de porco pelo sistema imunológico humano foram removidos;
  • 1 gene para evitar o crescimento excessivo do tecido cardíaco de porco foi removido;
  • 6 genes humanos responsáveis pela aceitação imune foram inseridos
A cirurgia durou 8h30 e correu bem, assim que foi conectado ao corpo de David Bennet o coração começou a bater, e o paciente está evoluindo bem. Os médicos de Bennett precisarão monitorá-lo por semanas para ver se o transplante funciona para fornecer benefícios que salvam vidas. Ele será monitorado quanto a problemas no sistema imunológico ou quaisquer outras complicações.
Por enquanto, os xenotransplantes são limitados pela oferta de porco, bem como por barreiras éticas e regulatórias. Atualmente, há apenas uma empresa nos EUA - a Revivicor da United Therapeutics - que possui instalações adequadas para a criação desses animais e porcos de nível clínico.

Dr. Bartley P. Griffith e David Bennet.
Créditos: University of Maryland School of Medicine

Embora a combinação de genes pareça ter funcionado, ainda não está totalmente claro para os cientistas quais são e quantas são as modificações genéticas necessárias. Os pesquisadores envolvidos nesse caso de David Bennet, acreditam que no futuro do xenotransplante as modificações genéticas sejam adaptadas para se adequar à órgãos receptores e específicos. Um exemplo disso foi na pesquisa de xenotrasplante entre porcos e babuínos - os babuínos que recebem os rins de porco, a modificação genética relacionada ao hormônio do crescimento causa problemas com o transporte da urina nesses animais.
Os cientistas reforçam a importância de que estudos relativos à transplantes sejam realizados em humanos e não mais em babuínos. Esses animais possuem anticorpos que os humanos não têm, então muito dinheiro tem sido investido na pesquisa por órgãos de porco adequados aos babuínos, quando esse dinheiro deveria ser direcionado para a pesquisa em humanos.
Outro detalhe importante que os cientistas precisam compreender é: como é funcionamento fisiológico do coração de um porco?
Aqui no Brasil, estudos similares a esses estão em andamento na USP, inclusive com os mesmos genes sendo manipulados. A pesquisadora responsável estima que em 2 anos a USP contará com um espaço para a criação desses animais, para que seja possível avançar mais nas pesquisas.
Existem muitas pesquisas buscando soluções para diminuir a fila de quem espera por um órgão. Se essa técnica do xenotransplante a partir de animais geneticamente modificados se mostrar segura e eficaz, milhares de pessoas poderão ser beneficiadas.
Referências: 1. Knosalla C. Succes for pig-to-baboon heart transplants. Nature 564, 352-352, 2018. doi: https://doi.org/10.1038/d41586-018-07419-5. 2. Readorn S. First pig-to-human heart transplant: what can scientist learn? Nature 601, 305-306, 2022. doi: https://doi.org/10.1038/d41586-022-00111-9.

Quer saber mais sobre a técnina CRISPR-Cas9?

Marissa G. Schamne
Marissa G. Schamne
PhD | Cientista

Pesquisadora e professora universitária, farmacêutica por formação. Despertou o interesse pela pesquisa durante a faculdade na Iniciação Científica, que obviamente foi na área da neuropsicofarmacologia. Concluída a graduação, segue o caminho da carreira acadêmica e pesquisa até a co-fundação do Rigor Científico – onde encontrou uma maneira de expressar todo seu amor pela Ciência, e vislumbra a possibilidade de levar essas informações ao maior número possível de pessoas. Era uma pessoa tímida que conforme foi se inserindo no meio acadêmico encontrou uma forma de libertar-se dessa timidez, e agora matraqueia sem parar. Apaixonada pela natureza, esportes ao ar livre e a sensação de liberdade que isso traz. Gosta de viajar pelo mundo, seja através dos livros que lê ou das viagens que faz. Almeja alçar vôos mais altos divulgando ciência por aí.

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