Quem está no comando?

Quem está no comando?

17 de junho de 2021

A coluna da Bicca aborda de maneira leve e descontraída temas relevantes sobre ciência e saúde. Seus personagens e seus questionamentos abrem portas para explicações e reflexões descomplicadas.


Número 3 - Quem está no comando?
 

Já era passada muito mais da meia-noite. Que horas ao certo, ela não poderia afirmar com precisão. No enrolar e desenrolar do cobertor, envolvida pelo barulho do ventilador que passava a cada 30 segundos, e suspensa em pensamentos repentinos, calculava como iria responder à pergunta daquele projeto? Seria melhor fazer uma cultura de células ou um experimento animal? Pegava no sono novamente. Em meio a disputas com sereias em oceanos que na verdade estavam inclinados no céu, assim de cabeça para baixo, ela se via grande e pequena, quando de repente, criava longas pernas e montava em um unicórnio. Mexia-se e piscava. O ruído das cortinas de seda cor de púrpura batendo suavemente nas paredes cor de creme do quarto, como resultado do ventilador oscilante, a faziam voltar a realidade daquele apartamento de 3 quartos em que viviam, mas não completamente, porque o arco-íris que o unicórnio deixava por onde passava, como um rastro, ainda estava lá. Prontamente em sua mente, assim como aquela praia paradisíaca que guardava uma baleia falante, estavam também os planejamentos para o que as crianças iriam levar de lanche para escola durante a semana. O dentista da Lice é na quarta-feira. - Que dia é hoje mesmo? Passou a baleia azul em frente ao calendário do mês, piscando em cintilante as estrelas do céu que também era mar, e que como estrela cadentes, perdiam o brilho e se tornavam roupas sujas no cesto para lavar. Nota mental: quando acordar lembrar que é preciso lavar roupa. Assim sem aviso, o barulho do ventilador, os sons da baleia azul cintilante, os ruídos da cortina, tornaram-se pano de fundo para um barulho ensurdecedor de “clicks”, de “plocs” e de “splafts”, de coisas quebrando no chão espatifadas. Ela dá um salto, das águas dos oceanos que pairavam ao contrário, ou seria do unicórnio...caiu da cama.

Chegando na sala depara-se com Clarice brincando com seus legos, no tapete de brincar que tornou-se perpétuo no chão da sala - substituiu para sempre aquele tapete de pelos cor camelo que combinava com a decoração amadeirada dos móveis. Olha para o relógio de parede sobre a geladeira na cozinha, e constata, já era bem passada meia-noite...5:30 da manhã.
- Clarice, minha filha, o que você faz acordada?
- Não consigo dormir mamãe, meu “célebro” despertou.
Riu descontroladamente, não sabia bem se de desespero, cansaço, ou orgulho, e respondeu: - Tudo bem Lice, o meu cérebro também não me deixa dormir direito. O que você está montando com esses legos?
Clarice engajada na sua estrutura de diferentes cores, com diferentes níveis de blocos, diversas torres e pontes, hiper conectadas, responde pacificamente, sem nem olhar nos olhos dela, por nem um segundo, com aquele ar de mega ocupada: - Estou montando um outro “célebro”.

O nosso cérebro é uma estrutura bárbara. Você já parou para pensar que, quando você para pra pensar, o maior sistema de comunicação do universo é ativado? A maioria das suas sinapses (sinapse nada mais é do que o evento que permite a comunicação entre um neurônio e outro) são mais rápidas que o correio e até mesmo que a internet. Você já parou para pensar que todos nós temos dentro da nossa cabeça um órgão que é formado pelos mesmos compostos e coordenado pelas mesmas moléculas? E mesmo assim, nós somos todos, muito, muito diferentes. Como isso é possível?
Assim como em um lego as peças iniciais são as mesmas para todos, mas ao final a estrutura que é montada é bem diferente. Imagine comigo, cada área do seu cérebro coordena uma ação ou emoção essencial para sua vida, e todas essas áreas estão conectadas. Você pode dividir essas regiões por cores e tamanhos, como em um lego. Imagine que a região que coordena nossa fala, por exemplo, é formada por legos de cor azul e verde, enquanto a que coordena o nosso medo é formada por legos vermelhos, azuis, e amarelos, ao passo que a que coordena a nossa dor é formada por legos verdes, azuis e roxos. E por aí vai. Essencialmente, todos nós temos nessas regiões as mesmas cores. Agora, pense comigo. Na região que coordena a fala você pode ter um lego azul e um verde intercalados, formando uma torre de 10 peças, enquanto que eu posso ter quatro legos azuis na base sendo encaixados a outros quatro legos verdes no topo, formando um quadrado de 8 peças. Percebe? Há muitas variações de formato, estrutura, quantidade de legos e na forma como eles se conectam. Por isso, somos tão peculiares. O que determina a montagem dos nossos legos, dentro da nossa cabeça, são fatores inúmeros, que estão presentes desde o ventre da mãe. O que a mãe come ou bebe, como a mãe dorme, se está feliz ou triste, estressada, cansada, se faz exercício físico, e muitos outros. Aí aparecem os fatores que influenciam após o nascimento, que incluem, aleitamento materno, cigarro, vacinação, álcool, clima, ambiente familiar, círculo de amizades, o que a criança come, como dorme, quais os estímulos recebe, e por aí vai, é uma longa lista. Aos 18 anos, nos tornamos adultos independentes, segundo a lei, porém não se engane, é apenas aos 25 anos de idade que o nosso cérebro atinge a maturidade. Até lá, muitas funções importantíssimas como, por exemplo, a função de inibição do cortéx pré-frontal, vixe, falei complicado, perdoem-me. Traduzindo, o nosso freio interno (que nos impede de tomar certas atitudes descabidas) ainda está em desenvolvimento. Não é a toa, que na adolescência nós sofremos de “paixonites agudas” e também de “revoltas sem causa”.
Assim, pensando em um lego, fica fácil de compreender porquê com as mesmas peças (adrenalina, serotonina, opióides, glutamato, gaba, dopamina, ocitocina, endocanabinóides...; esses são alguns exemplos de neurotransmissores, que são representados pelos legos de cores diferentes) somos tão diferentes. Porque cada um tem uma quantidade e uma conformação formando seu cérebro. E, portanto, dependendo de fatores genéticos (aqueles que herdamos) e de fatores externos (como os acima citados) vamos formar com as mesmas peças, estruturas diferentes.
Talvez, pensando assim você compreenda porquê algumas pessoas sofrem de depressão, ansiedade, pânico, porquê pessoas são atraídas por outras do mesmo sexo ou de sexo diferente, porquê umas são mais extrovertidas e outras são mais introvertidas.
Antes de ser duro consigo mesmo e de julgar qualquer um, pense, quem está no comando? Lembre-se, quando você está pensando com propósito, você está comandando o comandante.

Maíra Assunção Bicca
Maíra Assunção Bicca

Farmacologista e Neurocientista
Pós-doutorado em Imunofarmacologia (UFSC - 2016) e em Neurobiologia (Northwestern University - 2017-2019)
Research Fellow no Neurosurgery Pain Research Institute - Departamento de Neurocirurgia e Neurociência da Johns Hopkins School of Medicine.

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