O Poderoso Chefão

O Poderoso Chefão

16 de setembro de 2021

A coluna da Bicca aborda de maneira leve e descontraída temas relevantes sobre ciência e saúde. Seus personagens e seus questionamentos abrem portas para explicações e reflexões descomplicadas.

Número 7 - O poderoso chefão


- Ei Lins, Vamos terminar esse lego, foco!
- Nossa Lice, você tá gostando dessa palavra, né? É só o que você sabe dizer. Foco, foco, foco.
- Eu tenho um foco na minha parede e eu adoro, acho que a mamãe adora também, porque ela vive me falando isso: Foco Clarice! Quando a mãe me chama de Clarice o meu cabelinho do braço até arrepia.
- Você tá falando daquela luzinha que a mamãe liga na tomada para a gente dormir, Lice?
- Isso, a mamãe diz que aquilo é um foquinho. O meu foco tem que ser maior que aquele, eu quero que o meu seja um focão, bem grandão.
- O nosso foquinho é bem legal, não é mesmo Lice? Eu acho que faz um ótimo trabalho, ajuda a gente a não ter medo do escuro.
- O meu foco tem que ser bem mais potente que aquele, Lins. Eu preciso de muita luz, acho que é por isso que a mamãe vive dizendo para eu ter foco. O papai disse que acha fofo quando eu conto uma estória, porque são sempre, no mínimo, 3 estórias dentro de uma. Esses dias eu tava falando daquele buraco que a amiga da mamãe estava, lembra? E eu quase me perdi no meio da estória, uma vez, duas vezes, ah, algumas vezes.
- Você não acha que foco é uma coisa de gente grande, Lice?
- Claro que não né Lins, se até a parede tem foquinho, por que a gente não deveria ter?

FOCO! A palavra de ordem do mundo moderno. Steve Jobs – o criador da Apple – é famoso por muitos motivos, incluindo o fato de ter dito a seguinte frase: “Algumas pessoas acham que foco significa dizer sim para a coisa em que você irá se focar. Mas não é nada disso. Significa dizer não às centenas de outras boas ideias que existem. Você precisa selecionar cuidadosamente.” É tanta informação disponível, são tantos estímulos visuais e auditivos, são tantos interesses e possibilidades, é tanta gente diferente com muitas variedades de opções que ‘de vez em sempre’ fica difícil escolher. O nosso cérebro está acostumado a realizar tarefas múltiplas, ao mesmo tempo. Pare aqui para pensar, ele faz trabalhos básicos, todos os dias, 24h por dia, como comandar a contração involuntária (aquela que não depende do nosso querer) de músculos. Isso é importante porque são esses músculos que coordenam a nossa respiração e o batimento do nosso coração, por exemplo. Isso aí é o básico do básico. Vamos adicionar à lista de tarefas do cérebro, coordenar a nossa fome e o nosso sono, bem como a nossa vontade de ir ao banheiro. Parece simples, mas para fazer isso tudo o cérebro precisa fabricar pequenas moléculas (que chamamos de hormônios) para muitas vezes mandar os outros orgãos fabricarem outras moléculas, para só então, a ação acontecer. Além disso, para cada função dessas básicas, não é apenas 1 molécula que atua, na verdade em geral é a combinação de 3 ou mais moléculas diferentes, cansou?
Calma, a gente ainda está falando do básico. Podemos adicionar à lista o ato de comer, o de ler e o de digitar no celular, e ainda, o ato de ouvir. Parece complicado, mas a maioria dos jovens e adultos que almoçam sozinhos hoje em dia, fazem isso. Usam fones de ouvidos conectados aos seus celulares, enquanto fazem sua refeição e desempenham essas tarefas, todas ao mesmo tempo. Outra combinação possível é a de falar e andar, ou ainda falar e dirigir, ou ainda falar, olhar para o celular, digitar e andar, ou pior, falar, olhar para o celular, digitar e dirigir. Pensa! O cérebro é um orgão multitarefas, e portanto nós seres humanos, somos também. Esses foram apenas alguns exemplos. Apenas para pensar, por si só, o esforço que é feito pelo cérebro já é gigantesco, a demanda de energia é alta. Ou seja, fazer atividades requer energia, que para o cérebro, em sua forma mais primitiva, é a famosa glicose, ou açúcar; sendo o cérebro o órgão do corpo que mais a consome. Desta forma, não é muito difícil compreender que para fazer inúmeras atividades, nós também precisamos de energia. E portanto, precisamos escolher as nossas prioridades para determinar quais atividades merecem ou necessitam mais ou menos do nosso pontecial energético. Portanto, focar é de fato, escolher com sabedoria as nossas prioridades, e com toda certeza dizer não às inúmeras possibilidades que se apresentam, todos os dias.
Atrelada a essa palavrinha bonita, a tal do FOCO, vem outra palavrinha muito conhecida dos tempos modernos, a tal da PROCRASTINAÇÃO. Parece até loucura que essas palavras andem juntas, porque se formos pensar com cuidado elas podem significar quase que o oposto uma da outra. Em verdade, é muito comum que a gente sabote o nosso próprio foco, ou que ache que vai dar conta de tudo no nosso próprio tempo, ou que nós tentemos encontrar maneiras de fazer absolutamente tudo que queremos. E quando menos percebemos, já estamos procrastinando - já estamos deixando para amanhã o que poderíamos fazer hoje. Ou ainda, já estamos nos sobrecarregando com futilidades e pequenas coisas, enquanto as coisas mais importantes são deixadas de lado momentaneamente. Quem nunca?
Esse texto não é para que você se sinta mal, ou problemático, esse texto é para que possamos compreender que por trás desses comportamentos de procrastinar, ou de perder o foco, podem estar alguns ‘vilões’ escondidos, como a depressão (que foi abordada nesta coluna semana passada) ou ainda a ansiedade, o transtorno de déficit de atenção, ou o pânico, que são assuntos que serão ainda abordados por aqui. O nosso cérebro é o verdadeiro poderoso chefão. Estamos sempre fazendo mil coisas ao mesmo tempo, como ele nos ensinou. Estamos sempre querendo abraçar o mundo inteiro, esquecendo que temos apenas dois braços e duas mãos. Um foco de luz é suficiente para um breve iluminar na escuridão. Escolha com mais sabedoria, consciência e amor por si mesmo, quais os caminhos merecem o seu foquinho, digo, a sua luz. 

Maíra Assunção Bicca
Maíra Assunção Bicca

Farmacologista e Neurocientista
Pós-doutorado em Imunofarmacologia (UFSC - 2016) e em Neurobiologia (Northwestern University - 2017-2019)
Research Fellow no Neurosurgery Pain Research Institute - Departamento de Neurocirurgia e Neurociência da Johns Hopkins School of Medicine.

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