Formulações pediátricas: seriam as crianças pequenos adultos?

Formulações pediátricas: seriam as crianças pequenos adultos?

23 de agosto de 2022

Desenvolvimento de formulações pediátricas

O manejo terapêutico de doenças que acometem neonatos e crianças tem sido deixado de lado pela indústria farmacêutica no que diz respeito ao desenvolvimento de formulações que atendam às necessidades clínicas desse grupo de pacientes. Ao contrário do que se pensa, crianças não são adultos pequenos. O público pediátrico apresenta grande heterogeneidade de acordo com a faixa etária de desenvolvimento e requerem cuidados especiais em relação à administração de medicamentos.
Além disso, a realização de estudos clínicos em crianças não é algo simples para a indústria, devido à certas limitações, tais como: menor tamanho de mercado em relação ao público adulto, dificuldade para realização de ensaios clínicos em crianças, retorno financeiro lento, altas exigências propostas pelas agências reguladoras para o desenvolvimento de medicamentos pediátricos e, principalmente, a vulnerabilidade intrínseca deste grupo de pacientes. Dentro desse contexto, o emprego de medicamentos que possuem evidências apenas frente à população adulta é usual e, sendo assim, se faz necessário a extrapolação de dados para a terapia pediátrica. Ainda, muitos medicamentos prescritos para crianças e neonatos encontram-se disponíveis apenas em formas farmacêuticas sólidas, o que dificulta a deglutição e impede o ajuste de dose.

Uso off-label

Devido à carência de formulações pediátricas que respeitem as necessidades da faixa etária, observa-se a utilização generalizada de medicamentos off-label, sendo estimado que mais de 90 % das preparações pediátricas sejam obtidas a partir dessa estratégia. O uso off-label se caracteriza quando a prescrição do medicamento difere daquela preconizada em bula ou ao uso de produto não registrado junto ao órgão regulatório de vigilância sanitária do país. A não conformidade pode se referir a diversos aspectos da terapêutica como: dose, posologia, idade do paciente, via de administração, forma farmacêutica e indicação.
Uma prática comum relacionada ao uso de medicamentos off-label, é a obtenção de formulações líquidas extemporâneas ou de doses elaboradas a partir da derivação/adaptação farmacêutica, a qual define-se como “manipulação de especialidade farmacêutica visando o preparo de uma forma farmacêutica a partir de outra”. A conveniência de formulações líquidas se dá devido à facilidade de deglutição e possibilidade de adaptação de doses não-padronizadas, uma vez que, em pacientes pediátricos, é requerido o uso de doses individualizadas, baseada em sua massa corporal, podendo assim acompanhar o desenvolvimento do paciente.
A principal estratégia aplicada para a obtenção de formulações orais líquidas pretendidas para uso pediátrico a partir da derivação farmacêutica é a trituração de comprimidos ou da abertura de cápsulas, seguida da solubilização ou dispersão em água, alimentos ou outras bebidas. Neste sentido, já existem muitos estudos demonstrando a prática de derivação farmacêutica para obtenção de formulações líquidas para diversos fármacos empregados na terapia infantil, tais como, por exemplo, carvedilol, propranolol, captopril, furosemida, sulfadiazina, pirimetamia, entre outros. Nota-se que entre os fármacos com ausência de formulações líquidas destacam-se a classe dos anti-hipertensivos e antibacterianos.

Problemas da derivação/adaptação farmacêutica

No entanto, existem alguns problemas críticos relacionados a tal prática que precisam ser considerados na equação final, como é o caso da administração de excipientes desnecessários ou que podem provocar reações adversas, como hipersensibilidade e intolerância; dados restritos sobre incompatibilidades entre os excipientes e sobre a estabilidade físico-química e microbiológica da formulação; falta de informações sobre a biodisponibilidade da forma farmacêutica obtida; erros de cálculos e de preparo, contaminação microbiana por manipulação inadequada e; problemas de aceitação.
Visando suprir esta demanda, tem crescido o número de pesquisas relacionadas a estudos de incompatibilidades e estabilidade de formulações obtidas por derivação farmacêutica, bem como tem aumentado o número de trabalhos científicos demonstrando o desenvolvimento de formulações chamadas de “pediatric-friendly”, viabilizando a administração e o ajuste de dose adequados para o público pediátrico.
Nesse contexto, ferramentas de Quality by Design têm sido empregadas no intuito de determinar os atributos críticos de qualidade de um produto destinado especificamente para crianças e neonatos, bem como avaliar a influência da composição da formulação e dos processos de produção na qualidade da formulação final. Assim, espera-se que em um futuro não muito distante, novas formulações que aliem segurança e eficácia, sejam desenvolvidas e voltadas para o tratamento de pacientes pediátricos.
Referências: 1. Reis, F., Pissarra, R., Soares, H., Soares, P., Guimarães, H., 2021. Off-label and unlicensed drug treatments in Neonatal Intensive Care Units: a systematic review. J. Pediatr. Neonatal Individ. Med. 10, e100213–e100213. https://doi.org/10.7363/100213. 2. Allen, H.C., Garbe, M.C., Lees, J., Aziz, N., Chaaban, H., Miller, J.L., Johnson, P., Deleon, S., 2018. Off-Label Medication use in Children, More Common than We Think: A Systematic Review of the Literature. J. Okla. State Med. Assoc. 111, 776–783. 3. Belayneh, A., Tessema, Z., 2021. A Systematic Review of the Stability of Extemporaneous Pediatric Oral Formulations. Sci. World J. 2021. https://doi.org/10.1155/2021/8523091. 4. da Silva, M.R.M., Dysars, L.P., Dos Santos, E.P., Ricci Júnior, E., 2020. Preparation of extemporaneous oral liquid in the hospital pharmacy. Brazilian J. Pharm. Sci. 56, 1–15. https://doi.org/10.1590/S2175-97902019000418358. 5. BRASIL. Assistência Farmacêutica em pediatria no Brasil. Ministério da Saúde, p. 1–88, 2017.

Luana Mota Ferreira
Luana Mota Ferreira

Farmacêutica pela Universidade Federal de Santa Maria
Doutora e Pós-Doutora em Ciências Farmacêuticas pela Universidade Federal de Santa Maria
Especialista em Oncologia pela Universidade Franciscana
Professora Adjunta na Universidade Federal do Paraná

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