Expectativa x Realidade

Expectativa x Realidade

01 de outubro de 2021

A coluna da Bicca aborda de maneira leve e descontraída temas relevantes sobre ciência e saúde. Seus personagens e seus questionamentos abrem portas para explicações e reflexões descomplicadas.

Número 8 - Expectativa X Realidade


- Manhê, falta muito para chegar as férias? Grita Lins, muito muito excitado.
- Manhê, eu quero férias mas eu não quero, eu amo ir pra escolinha! Dispara Lice.
- Por que vocês estão tão focados nas férias? Pergunta a mãe com muita calma e paciência, enquanto passa geleia no pão.
- Você e o papai disseram que a gente ia viajar nas férias, eu quero muito viajar. Da última vez foi muito divertido. Lins salienta a importância das viagens nos seus planos enquanto todos tomam café da manhã, sentados à mesa.
- Viajar é bom mesmo! Por que a gente não vive viajando mesmo, mãe? Pergunta Lice com um olhar de pedincho, aquela voz engajada e aquele sorriso maroto, difícil de resistir.
- Clarice, minha filha. Um sábio uma vez disse que “ a vida é uma viagem”, de acordo com essa teoria, a gente vive viajando. O que temos que fazer é saber aproveitar as diferentes viagens.
- Nossa, mãe! Espira Lice.
- Mas mãe, assim, é sério, eu tô querendo muito ir. Exclama Lins, fazendo bico e apoiando as mãos no queixo.
- Isso que você tem Lins, chama-se ansiedade, e é muito normal.
- Chama o que, mãe? Pergunta Lice enrugando a testa e espremendo as sobrancelhas, intrigada com mais uma nova palavra.
- Ansiedade, filha. Vem da palavra angústia, anseio. Quer dizer quando a gente quer muito alguma coisa, quando a gente espera que essa coisa aconteça, quando a gente quase visualiza ela já acontecendo, quando a gente sente por algo antes de acontecer.
- Nossa, mãe. Realmente você é demais! Você usa umas palavras bem difíceis e fala muito de filosofia. Uau. Fala Lins boquiaberto.
- Agora, que você já deu esse show de sabedoria, manhê, já deu de tomar café? Eu estou com um anseio muito grande de ir para escola. Diz Lice, categoricamente.
Lins completa: - E eu com uma angústia para que logo cheguem as férias.

ANSIEDADE

Nesses tempos em que a gente vive, quem nunca ouviu essa palavra? Muitas pessoas ao lerem ou ouvirem essa palavra já logo pensam em doença. Não é bem assim. Ansiedade, assim como o medo e a dor, por exemplo, são processos que acontecem no nosso corpo e que são normais. Eles tem um papel fisiológico, como chamamos. Isso quer dizer que o cérebro ativa regiões e células específicas que vão trabalhar para que o resultado seja uma dessas condições: ansiedade, medo, dor. E isso acontece de forma normal ou natural, isso que significa fisiológico. Ou seja, o nosso organismo precisa dessas respostas para a sobrevivência. De modo normal, a ansiedade nos prepara para o que possivelmente irá acontecer, o medo nos ensina a lidar com o desconhecido de forma cautelosa, e a dor nos avisa que algo de errado está acontecendo. Esses são todos mecanismos essenciais, ou seja necessários para que a gente viva em harmonia com o meio-ambiente e as outras pessoas. Em outras belas palavras, mecanismos vitais.
O problema acontece quando o nosso poderoso chefão, ou nosso comandante – para quem me segue até aqui, sabe do que eu estou falando; para quem não entendeu, eu convido a ler as outras colunas que escrevi para o Rigor – perde o controle. Ou seja, quando aquilo que era para ser normal passa a acontecer de forma EXAGERADA, de uma tal forma que o próprio comandante não consegue mais controlar.
Bizarro, não é mesmo?! Vamos pensar numa guerra. O general (que nesse caso é o seu cérebro) está comandando um exército, com diferentes soldados, cada um com seu posto e sua especialidade (que nesse caso são seus outros órgãos e as diferentes células em cada um destes órgãos). 1) Inicialmente o general tem uma estratégia, começa a atacar com mais cautela, com esquemas de infiltração, tropas armadas, e cálculo de rotas, ações sob as quais ele tem muito ou moderado controle. 2) Em certo ponto, a batalha começa a ficar intensa, e então o general decide lançar mísseis e bombas, que causam destruição em massa, e resultam em baixas no exército de ambos os lados, do inimigo e do seu próprio, e neste cenário o general exerce praticamente controle zero sob os efeitos causados pelas bombas, ou seja, fora de controle. O cenário número 1 seria a ansiedade de modo normal. O cenário número 2, a ansiedade patológica, ou seja, aquela que é uma doença.
É realmente muito difícil, nos dias de hoje, controlar as coisas. Nós sentimos, com muita frequência, que as coisas estão fugindo do controle. A ansiedade doença faz muitas vezes com que o nosso coração bata mais forte e mais rápido, que a nossa respiração fique ofegante, que a gente perca a voz, faz com que fiquemos mais ‘zonzos’, que as nossas mãos e testa suem muito, e até vontade de vomitar podemos sentir. Isso não é normal. E geralmente, ela não vem sozinha. Junto com a ansiedade caminha o estresse, o medo e a depressão. É quase que um combo, você precisava só da internet, mas leva junto telefone, canais de TV e filmes.
Daqui uma semana você tem uma apresentação no trabalho, ou na escola, na frente dos seus colegas. O seu cérebro já está maquinando hoje, como vai ser. O que você vai dizer, como vai dizer, que roupa vai usar. Qual a cor do slide que vai ser melhor, aliás, faço slide, ou levo um documento impresso para cada um? O chefe/Professor vai estar lá! Puts...O que será que ele vai achar? O que os meus colegas vão pensar, ou pior, o que irão dizer depois? Será que eu como antes da apresentação, bebo água? Vai dar vontade de ir no banheiro, melhor não. Na noite anterior eu vou dormir mais cedo, preciso estar descansado/descansada. AHHAHAHHAH, seu cérebro ri de você mesmo, porque você não consegue dormir bem a semana toda, a mente não para. E aí está a rota perfeita para o insucesso, a tenebrosa ansiedade. Os jovens do TikTok fariam o meme: Expectativa X Realidade. E é bem isso, meus caros leitores, eu e você criamos muitas expectativas, maiores do que geralmente podemos controlar, “mas a realidade que vem depois não é bem aquela que planejei...” (leia cantando com a entonação de Pitty, ou do original Ira). Nem sempre é, na maioria das vezes não é. Porque a verdade é que muitas vezes nós não conseguimos controlar nós mesmos, quem dirá controlar o outro. Nesse combo louco, frente a situações que nos causam desconforto, a gente pode sentir muito medo, pânico, aflição, do que vai acontecer; e isso deixa a gente estressado, agitado, perturbado. Em muitas vezes, o contrário também é real, a gente já está num nível de estresse altíssimo, por “n” motivos: contas para pagar, carro para arrumar, mãe para cuidar, filho para levar na escola, trabalho para fazer, e aí quando a gente se depara com uma situação desconfortável, o medo já está solto no quintal, é quase que automático. A gente não sabe quem veio primeiro, o ovo ou a galinha, conhece essa expressão? É isso, quem causou a ansiedade primeiro, o medo ou o estresse? Eles caminham de mãos dadas, e geralmente são estudados em humanos e em animais de forma conjunta, quase impossível separar esses fatores. Vanessa da Mata e Ben Harper cantariam no dueto: “expectativas, desleais/ isn’t real, expectations”. Porque a gente cria expectativas irreais, que muitas vezes são inalcançáveis, a realidade acaba por vez a nos decepcionar, obviamente, porque não foi nada daquilo que imaginamos. E aí a porteira da depressão se abre, e temos o combo completo. Esses sinais exacerbados, que mais cedo ou mais tarde tornam-se doenças crônicas, podem ser resultados de muitas coisas, traumas na infância, abuso de substâncias, má-nutrição, ambiente de crescimento hostil. Pare de julgar as pessoas e chamá-las de louca, cada pessoa precisa saber ‘onde o seu sapato aperta o seu calo’.
A minha função aqui é descomplicar e não complicar mais ainda, certo?! Aí você me pergunta: O que eu posso fazer? Em muitos casos para tentar ‘controlar’ a nossa ansiedade precisamos de ajuda. Dependendo do estado ou do nível patológico (se a ansiedade está impedindo/limitando a pessoa de exercer as tarefas do dia-a-dia) que a pessoa se encontra, ela precisa de acompanhamento médico, medicação, terapia, e muita força de vontade. Não é remédio para louco, um psicofármaco, como esses medicamentos, normalmente tarja preta, são chamados são fármacos que auxiliam a controlar a doença, assim como qualquer outro fármaco para dor, congestão nasal ou diabetes. É muito bom lembrar: a automedicação, ou seja, tomar remédios/medicamentos por conta própria, não é uma saída plausível! Porque seu vizinho disse, porque a mãe da fulana também tem, porque eu conheço meu corpo, porque ciclano que trabalha comigo disse que é bom, NÃO são alternativas viáveis e sadias!! Se seu pai tem uma doença cardíaca que precisa de operação, não vai operar a si mesmo, vocês vão procurar um cirurgião; se você tem um problema no seu carro, vai procurar um mecânico; se um eletrodoméstico da sua casa parou de funcionar, vai procurar um eletricista; se o computador ‘deu pau’, vai procurar um técnico ou uma loja autorizada; se a sua privada entupiu, vai procurar um encanador. Porque se você não é o especialista, não vai saber fazer direito. Se você quer o melhor para os seus entes queridos e para o seu bens materiais, é lógico que você deva querer o melhor para você mesmo. E isso inclui não tomar remédios que você não está totalmente ciente do que podem causar, de como irão agir, de quais efeitos colaterais podem aparecer, qual a dose ideal para você, quais as interações com outros medicamentos, alimentos ou álcool são possíveis, e por aí segue a lista. Acho que você entendeu o recado, certo?
Em níveis mais brandos, de ansiedade que eu estou falando aqui, o que eu faço por mim e você pode fazer por você é: aprender a meditar, aprender a respirar (não a respiração involuntária, que todos fazemos o tempo todo, eu digo respirar fundo, ativar o nervo vago, liberar substâncias que irão contrabalancear os efeitos do estresse), olhar com mais carinho para si e reconhecer em quantas coisas já melhorou, o quanto já evoluiu, pensar nas situações que vai enfrentar da sua perspectiva, e não da perspectiva alheia, porque lembre-se, essa você jamais será capaz de controlar. Pense, o que você pode fazer por você em situações que te deixam ‘mais ansioso’. Se ouvir música, tomar um chá, chegar lá antes, vestir uma determinada roupa, se preparar com antecedência, ver um filme, etc...te fazem se sentir melhor e mais confortável, faça. Você está ensinando ao seu cérebro como lidar com essas situações que te causam essa angústia, esse anseio. E nem sempre estão ligadas a momentos ruins, viu? As vezes a gente fica assim, inquieto por uma grande festa que está por vir, ou quando vamos encontrar alguém novo, ou um encontro romântico que foi marcado pelo aplicativo, ou quando vamos adotar um animal de estimação, e muitos outros exemplos. O autocontrole nasce quando a gente aprende a escutar a si mesmo, e ao nosso corpo, e deixa de ouvir as preocupações e opiniões dos outros.

Maíra Assunção Bicca
Maíra Assunção Bicca

Farmacologista e Neurocientista
Pós-doutorado em Imunofarmacologia (UFSC - 2016) e em Neurobiologia (Northwestern University - 2017-2019)
Research Fellow no Neurosurgery Pain Research Institute - Departamento de Neurocirurgia e Neurociência da Johns Hopkins School of Medicine.

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