Células da glia: dos bastidores a personagem principal

Células da glia: dos bastidores a personagem principal

29 de julho de 2022

A primeira vez que escutei sobre as células da glia elas me pareceram esquecidas perto dos icônicos neurônios, mas, como eu fui bailarina, logo fiz uma analogia: os bastidores dos palcos e as células da glia fazem o espetáculo acontecer. O funcionamento dos bastidores proporciona a beleza que vemos no palco, que a bailarina apresente o seu melhor, assim, micróglia, astrócitos e oligodendrócitos promovem o melhor estado para que as sinapses ocorram. Nesse sentido, sempre questionei se alterações nessas células, tão importantes para o funcionamento dos neurônios, também poderiam influenciar na fisiopatologia de algumas doenças.
Atualmente, sabe-se que a função cerebral depende de interações coordenadas entre neurônios e células gliais e que alterações no funcionamento dessas células estão presentes em diferentes quadros que ocorrem em nível de sistema nervoso central, como por exemplo, a depressão.

Neuroinflamação

Segundo a revisão de Troubat et al (2021), evidências clínicas e pré-clínicas sugerem que a neuroinflamação é um fator chave que interage com os três correlatos neurobiológicos do transtorno depressivo maior: depleção de serotonina cerebral, desregulação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA) e alteração da produção contínua de hormônios.
A neuroinflamação ocorre a partir da ativação do sistema imunológico que leva ao aumento dos níveis de citocinas estimulando astrócitos e células microgliais, que por sua vez produzem citocinas por um mecanismo de feedback. Nessa condição, a micróglia, além de liberar mediadores inflamatórios, também secreta glutamato. Porém, os astrócitos parecem não ser capazes de absorver o excesso de glutamato que aumentará a neurotransmissão glutamatérgica, levando ao desenvolvimento de sintomas de depressão.
Além disso, pacientes com depressão demonstraram aumento dos níveis séricos de citocinas pró-inflamatórias que voltaram ao normal pelo tratamento com antidepressivos. Sendo assim, observa-se a correlação células gliais-neuroinflmação-depressão.Há a recente sugestão que a neuroinflamação pode não apenas derivar de condições patológicas, mas também de aumento da atividade neuronal denominada neuroinflamação neurogênica que pode agravar com estímulos estressantes. Uma vez que, o estresse promove ativação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA), bem como a uma neurogênese hipocampal reduzida, juntamente com prejudicada plasticidade sináptica hipocampal e neuroplasticidade morfológica. Dentro das alterações já descritas em células gliais nesse contexto tem-se: a hiperramificação microglial, atrofia astroglial e redução de oligodendrócitos maduros no córtex pré-frontal, como demonstrado em estudos apresentados por Brites & Fernandes (2015). Isso tudo reforçando que modificações em células da glia impactam no transtorno depressivo.

Com isso, fiz a relação: se a figurinista não termina o figurino a bailarina terá que entrar em palco sem, se o sonoplasta não colocar a música não terá como dançar, se o técnico de iluminação não colocar luz a plateia não poderá ver. Assim também acontece em âmbito celular, o que ocorre nas células glias impacta no funcionamento geral do sistema nervoso central.

Estudos post-mortem revelaram alterações patológicas únicas em células neuronais e gliais no córtex pré-frontal dorsolateral de pacientes com depressão, em particular um tamanho e densidade de células alterados. Relacionado a isso, foram encontrados déficits de astrócitos, como uma diminuição do número celular de proteínas ácidas fibrilares gliais (GFAP) - células imunorreativas e patologia oligodendrocitária, adicionado de ativação anormal da micróglia e aumento do número de células.

Evidências sugerem que a patologia glial e a alteração do número de células gliais são características proeminentes no transtorno depressivo. Ou seja, se os componentes dos bastidores apresentam algum problema ou algo limitando, será possível perceber efeitos no palco, o espetáculo terá suas falhas. Desta forma, os estudos dos mecanismos celulares e moleculares da depressão associada à inflamação proporcionará novas possibilidades para o desenvolvimento de possíveis novos antidepressivos direcionados à neuroinflamação ou suas vias adjacentes.
Referências: 1. BRITES D, FERNANDES A. Neuroinflammation and Depression: Microglia Activation, Extracellular Microvesicles and microRNA Dysregulation. Front Cell Neurosci. 17; 9:476. 2015 Dec. 2. TROUBAT R, BARONE P, LEMAN S, DESMIDT T, CRESSANT A, ATANASOVA B, BRIZARD B, EL HAGE W, SURGET A, BELZUNG C, CAMUS V. Neuroinflammation and depression: A review. Eur J Neurosci.53(1):151-171. 2021 Jan. 3. UMPIERRE AD, WU LJ. How microglia sense and regulate neuronal activity. Glia. 69(7):1637-1653. 2021 Jul. 4. WOODBURN, S.C., BOLLINGER, J.L. & WOHLEB, E.S. The semantics of microglia activation: neuroinflammation, homeostasis, and stress. J Neuroinflammation 18, 258. 2021.

Isadora Machinski
Isadora Machinski
Farmacêutica

Mestranda em Ciências Farmacêuticas - UEPG, farmacêutica por formação, professora voluntária, acadêmica de Psicologia e ex-aluna da Certificação Rigor Científico em Neurpsicofarmacologia. Desde o primeiro ano da graduação estava imersa no universo da pesquisa, por meio da Iniciação Cientifica, transitando entre as áreas das Ciências Farmacêuticas até direcionar seus estudos às plantas medicinais. Antes de concluir a graduação em Farmácia, em meio a pandemia de COVID-19, iniciou seus estudos em Psicologia e então nasceu a integração entre etnofarmacologia e neurofarmacologia. Segue, então, o caminho da carreira acadêmica e pesquisa através do mestrado acadêmico aprofundando esse interesse. Encantada pela ciência e apaixonada por lecionar e compartilhar conhecimentos.

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